Julián Fuks

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Opinião

Há cinquenta anos mataram Neruda, mas não puderam matar sua poesia

Há cinquenta anos, neste exato dia, mataram um grande poeta. Eis o que tão lentamente desvendamos: que Pablo Neruda não morreu pelo câncer que consumia seu corpo, e sim foi morto pelo câncer que corrói as entranhas do nosso continente, pelo brutal autoritarismo que atravessa a nossa história.

Em setembro de 1973, os militares chilenos não se contentaram em dar um golpe contra o presidente legítimo, e acossá-lo até provocar seu suicídio. Não se contentaram em prender, torturar e matar milhares de inocentes, e de espalhar seus ossos pelo deserto obrigando os sobreviventes a uma busca eterna. Doze dias depois do golpe, também acharam que era preciso matar um poeta, matar uma figura imensa da literatura universal, envenenando-o quando ele já definhava na cama de um hospital.

A revelação é recente, mas não chega a surpreender. Nossas ditaduras e seus simpatizantes nunca tiveram nenhum apreço pela poesia, pela arte, pelo lirismo, pela inteligência. Porque não compreendem nenhum desses aspectos mais sutis da experiência humana, porque não compreendem a beleza, sentem-se intimidados e reagem com o único instrumento de que dispõem, a violência. Contra o perigo da vida franca e aberta ao desconhecido, da vida carregada de pensamento e sentido, impõem o seu ímpeto de dor e obscuridade. Por isso alvejaram Victor Jara, Paco Urondo, Haroldo Conti, Rodolfo Walsh, Pablo Neruda, e tantos outros e outras. Matam os poetas porque sabem que não podem matar a poesia.

Os versos de Neruda continuam vivos, ele nunca deixará de ser um escritor gigantesco, e no entanto este não é bem o tempo de celebrá-lo — daí minha dificuldade em escrever este texto. Infelizmente, Neruda não foi o homem que gostaríamos que tivesse sido. Cometeu também ele os seus horrores, confessou em sua biografia o estupro de uma mulher, sabemos que também abandonou uma filha. Os cinquenta anos de sua morte trazem então esse duplo travo amargo: descobrir sua dimensão de vítima e sua dimensão de algoz. Cabe lidar com a contradição do personagem. Cabe, talvez, celebrar só os versos, não o homem. Cabe aceitar sua ausência crescente no debate contemporâneo, mas também indignar-se com as circunstâncias de seu assassinato.

Da poesia de Neruda é justo prezar seu compromisso com as coisas simples, sua telúrica atenção aos objetos da terra, dotando-os com a amplidão de seu sentimento oceânico. "Observar profundamente os objetos em descanso" era o que ele propunha como método: "deles se desprende o contato do homem e da terra como uma lição para o torturado poeta lírico". Das coisas puras do mundo ele recolhe sua "poesia impura", uma poesia "com rugas, observações, sonhos, vigília, profecias, declarações de amor e de ódio, bestas, arrepios, idílios, crenças políticas, negações, dúvidas, afirmações, impostos."

Dessa multiplicidade seria possível depreender um poeta moderno, de linguagem leve e arisca, mas não, não é assim que seus versos chegam aos nossos ouvidos. Em tempos recentes, talvez como rechaço à influência excessiva que Neruda exerceu por várias décadas, tem-se apontado a pompa em sua linguagem, uma solenidade pouco condizente com a sensibilidade do novo século. A essa poesia recitativa, difícil de separar da voz melosa com que o próprio Neruda a lia, como numa ladainha lúbrica, tem-se preferido algo mais ágil e irônico, algo mais anárquico como na antipoesia de outro chileno, Nicanor Parra.

Mas seria um equívoco abandonar, por isso, a riqueza dessa leitura e seus fortes momentos de transcendência. Seria um equívoco ignorar o compromisso dessa poesia também com os homens simples, com os artesãos, os carpinteiros e os oleiros aos quais o poeta equiparava seu ofício, ignorar seu desejo de que todos vivam em sua vida e cantem em seu canto. E seria um equívoco, da mesma maneira, desprezar seu compromisso com as lutas do continente, sua ação poética de "inimigo das leis, governos e instituições estabelecidas", e o "Canto Geral" que percorre a história da América Latina.

Essa é a poesia que a ditadura quis matar, mesmo quando o poeta já se aproximava sozinho da morte, em direção a "um país extenso no céu", "pisando uma terra removida de sepulcros um tanto frescos". Essa poesia que acusou com audácia a violência dos supostos conquistadores, e que não se cansou de incensar a luta dos resistentes. Essa poesia que continuou a acusar quando surgiram novos conquistadores, e foi preciso erguer barricadas de palavras contra o imperialismo, contra a exploração capitalista e seu rastro de desigualdade e injustiça. Essa é a poesia que a ditadura quis matar e, não o conseguindo, só o que fez foi assassinar o homem que a escreveu.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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